top of page
PHOTO-2023-12-09-18-41-39.jpg
17. Março, 2019
Na véspera de ir a casa da Sofia Sá da Bandeira.
Em frente à FNAC na Rua Nova do Almada há uma loja de brinquedos para adultos e crianças, com curiosidades vulgares já vistas e vendáveis, que têm às vezes graça ou quase nunca a têm. Eu estava na porta de entrada à espera que o meu amigo na fila pagasse uma caixa rotativa de albergar cigarros, um cinzeiro verde, cor da esperança. Enquanto esperava, como é meu costume nestas situações, observava as pessoas que estavam na fila. O meu olhar pousa numa adolescente de pele muito bonita e fresca que olhava estranhamente de lado para o chão. A pele, devagarinho, ia ficando avermelhada e subitamente rola-lhe pela cara uma lágrima cristalina. Percebi nesse momento que é cega. A mãe paga a conta e num gesto automático, sem a olhar sequer, pega-lhe na mão e dirigi-se para a porta. A rapariga, insegura e triste, segue arrastada pela mão da mãe e ambas desaparecem na rua no meio da multidão.
A mãe não vê que a filha chora.
Vim à baixa hoje porque queria comprar na FNAC o "Ensaio sobre a cegueira" de José Saramago. Viver no estrangeiro significa só ter acesso a literatura portuguesa em forma digital, quase sempre "traduzida" em brasileiro. Trago-o finalmente comigo porque admiro a obra de Saramago, mas ainda não li este nobel da literatura. Só depois de ter apresentado o meu livro de artista "Elogio da Cegueira" me ocorreu o que existe o Ensaio sobre a cegueira do Saramago, que começa com a frase:
"Se podes olhar, vê.
Se podes ver, repara."
O livro da Sofia tem o prefácio de Pilar del Rio, viúva de José Saramago.
Escrevo na sala da FNAC dedicada a música clássica ao som de uma peça maravilhosa(mente triste) de Henryck Górecki, SIMPHONY OF SORROWFULL SONGS, Op. 36, numa encenação extraordinária de Beth Gibbons interpretada pela Polish National Radio Symphony Orchestra, com o maestro Krysztoph Penderecki.
 
Uma hora antes, vinda do museu Gulbenkian, junto ao muro que acompanha o jardim, na Rua Marquês Sá da Bandeira, apressada a caminho do hotel, reparo que algures no chão do passeio havia uma lápide em que algo estava inscrito. Volto atrás, e leio:
"Conto de fadas"
Era uma vez um homem
Que era sempre justo
Herman de Conink
Mechelen 1944
Lisboa 1997.
Intrigo-me.

Chego ao hotel e investigo no Google:
Herman de Coninck (1944-1997) nasceu na Bélgica e morreu em Lisboa. Era poeta, um dos mais importantes flamengos do pós-guerra, ensaísta, jornalista e professor na universidade. Ocupação que abandonou em 1970, para se tornar editor da revista HUMO, até 1983. Numa das suas deslocações ao estrangeiro para participar num colóquio literário, desta vez em Lisboa, Herman Coninck sofreu um colapso e caíu inanimado, no dia 22 de Maio de 1997, no passeio da Rua Marquês de Sá da Bandeira, nas Avenidas Novas, junto à Gulbenkian. Um ano após a sua morte, a viúva mandou gravar no chão da calçada um desenho e uma inscrição onde se lê: “Conto de Fadas — era uma vez um homem que era sempre justo”.
Tinha acabado de ser aconselhada na Gulbenkian a apresentar uma proposta à viúva de Saramago, Pilar del Rio, a propor a apresentação da segunda fase do meu prjecto "Cegueira e a Luz do Pirilampo" apresentado na Giefarte em Setembro de 2018.
 
Se podes reparar, pára
Se podes parar, reflecte.
bottom of page