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                                                                                                   Ponto • Pé de Flor

 
 
o artista repete os gestos da natureza
 
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PAISAGEM

Orvalho.
Estou estendida de costas deitadas num prado. Sinto o moldar da terra quente sob o meu corpo. O meu olhar oscila por entre as pérolas que brilham e se recortam do céu. São tantas. Parece absurdo mas sem qualquer esforço consigo contá-las todas num ápice. Há uma ordem nisto tudo que ainda não conheço. Sem ainda saber que estrada trilharei, se me perderei ou me ganharei, quero-as, a essas luzes, como no princípio, todas para mim.
Vejo então o silêncio. Mas não me vejo completamente. Nem a Ti.
Enrolo-me toda no chão dando voltas e voltas e o m
eu corpo transborda gotas de orvalho. Levanto-me. Ao sacudir essa massa líquida o meu ser está a boiar num lago enorme. Estendo a mão para apanhar a primeira pérola. Agarro-a como quem apanha um guia de estradas. Engulo-a. Fecho os olhos e mergulho.
É esta então a paisagem que vejo da minha janela: são gotas de sangue as pérolas deste novo céu. Sem parar, fogem a uma velocidade vertiginosa, e logo voltam, num movimento continuo e permanente. Pressinto que este mar é todo meu e todo teu. Como que juntos num destino comum, olho-me a mim enquanto me olho. Mas não estou lá. Estou ainda estendida de costas deitadas no prado que vejo da minha janela, na esperança de agarrar mais uma pérola. Neste momento, tal como com Jonas, o mar solta um espirro colossal. E transporta-me com ele.
Aparição.
Uma parede infindável corta o céu em dois: a parte de baixo é composta de uma teia de fios invisíveis, que sobe desde o limite do solo, junto à terra húmida, e enxerga uma distância incalculável. Toco com as duas mãos essa teia de fios e tacteio, muito ao de leve, uma conta minúscula, uma pérola quase imperceptível que sobressai dessa parede sem fim. Puxo-a na direcção dos meus olhos e a teia feita de fios invisíveis solta-se toda de uma vez.
E vejo num relâmpago a natureza toda. Na posição do Sol, da Lua e das Estrelas sigo a direcção do Vento. Abro as mãos e solto a terceira pérola. É desse lugar que descubro poder estar, ao mesmo tempo, em duas ou mais distâncias, em dois ou mais tempos distintos. Sorrio comigo mesma: sem nos darmos conta, somos muitas vezes génios em acrobacias destas. E assim entendo como somos individuais e globais simultaneamente. Como tu e como eu, somos tantos!
Pasmo.
Vejo então o silêncio todo. Observo o modo como cresce uma árvore, como ladra um cão, como voa um pássaro, como brinca esta criança e como morre aquele homem. O barulho e o rumor das cidades, o burburinho que se faz sentir nos altos edifícios da economia mundial, a neve que poisa na montanha e o lume que arde na lareira ao anoitecer. O homem que dorme na rua nessa noite fria de inverno, os amantes que se abraçam nas noites do tempo todo e a minha posição na natureza na terra, colocada nesta posição particular no tempo. Há uma ordem nisto tudo que ainda não conheço.
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ANJO
uma gota de orvalho
num olhar
voa uma botrboleta
um sopro numa vela acesa
brilha uma estrela
num aceno de mão
um sorriso
num adeus
um a-deus
num pensamento
o silêncio
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As nuvens hoje
aparecem assim
como naqueles postais
de anjinhos,
chatinhas em baixo
e abauladas em cima
a salpicar o céu
Árvore
Ergo os meus olhos
para um lugar
alto
distante
os meus pés
firmes
no chão
penso em ti
algo me prende
para cima e
para baixo
                sou uma chama ascendendo
                para dentro e para fora
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CASA
Daniel
se eu fosse sol
media a luz no horizonte
e regava o caudal dos rios
enxertava os passos tresmalhados
e subia até à onda mais alta
do mar todo
se eu fosse vara
media a sombra projectada pelos mastros
seguia até se calar o vento
e contemplaria o silêncio
em expansão
se eu fosse árvore
erguia-me para além do canto do pássaro
adubava o ar que resplandece
a nuvem voltaria a florir
e soltaria a seiva colhida pelas águas
se eu fosse pássaro
migrava para o interior
da casa e abria paredes de fermento
buscaria o interior do chão
e deitava-me sobre a pedra encandesdente
se eu fosse casa
acolhia feridas e lágrimas perdidas
abrigaria o cantar da ave
e dançaria o alento desejado
até a manhã nascer de novo
                 Posso abraçar a manhã
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MEL
o teu olhar
é a transparência
do mel
ouço
o silêncio
no lírio
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PÃO
Que efeito assume
um sorriso
inteiro
no infinito
uma lágrima
no universo
um passo incerto
no absoluto
desconhecido
um abraço
na vereda
do futuro
a luz entra da janela
migalhas de pão
a mesa
um papel amarrotado
restos que entram pelo dia
que chega
ou sobram das noites
que perduram
a intimidade
um monte de pincéis
desordenados
salpicos de tinta
por limpar
e o que fica
desse processo
lento e meditado
e desabrocha em mim
o alento do devir
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VIDA
Por vezes
observo por fora
o pulsar do coração
por dentro
do meu corpo
e não posso deixar
de pensar
em espanto
hoje de manhã
buscando-me no caminho
do campo que vejo da minha janela
procurei a ovelha
Negra
no meio do rebanho
todas corriam
a mais negra porém
corria mais
no campo
da minha vida corro
todos os dias
desejo ser a mais rápida
sem saber se por ser negra também
quero correr como
João
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(da) NATUREZA
sou branca

descoordenada

caio muito 

magôo-me
 
sou alta de 

olhos claros descendo 

de celtas e 

africanos

vejo os meus 
olhos
negros por 
trás
de outros 

azuis a minha pele 

clara cobrindo outra 

pele distinta
 
vivo no mundo 

do meu tempo
a meu modo 

distinto do outro
que no mesmo 

tempo vive

trabalho 

no silêncio viajo 

por dentro do sistema

do meu eu

a par do sistema 

mundial 

e fora dele 

escolho a interioridade

do meu ser

que ao mundo
              - e a Deus 
pertence
vejo as cores

de outra côr o céu

e outros céus

e o chão

e os caminhos

sou triste

sou alegre

choro

confio

desconfio

busco

procuro 

encontro

desencontro

encontro-me
desencontrando-me
 
olho o 

outro sinto-o

como se eu 

mesma esse outro 

fosse

aproximo-me

distancio-me
iludo-me

desiludo-me

não desisto

confio

luto com 

o luto
ferida
 
sinto-me

penso-me

busco-me

sou eu e sou 

o outro sou 

a onda do 

mar grave 

como o vento 

e os oceanos
 
 
sou criança

sou velha

sou jovem

sou de todas

as idades

abelha

borboleta

escaravelho

sou tudo

sou nada

desvio-me do centro 

e para o centro 

vou
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LIVRO
o levantar da folha
e a brisa
ao cair na luz
caminhar intuindo
o monte
e a solidão
beber desertos
pousados nas trevas
e os rasgos
nos pensamentos
enxertar a fome
buscada
e a sede recolhida
bondade
balançar fluindo
letra na letra
verbo na luz
aflora a pétala
Sigo a brisa
da folha que cai
outra levanta
e a dança que (se) inclina
a-folho as-palavras
soltam pétalas
na flora a flor
vivida na rosa
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MORTE
Meu norte / ganhei o norte
minha sorte / a sorte
minha morte / a morte
nortesortemorte
             nor tesor-te mor-te
             nor-te sor temor-te
             sor tenor-te mor-te
Os cabelos da Madalena
Pai
Amar
Sopro
Pó de impressões digitais
LUZ
 
No dia da partida
ou na noite
lembro o cheiro
o granito e o musgo
escorrego
na pedra
bebo da fonte
olho o céu a fio
estou perto
do regresso
original
é tudo uma questão
de movimento
e de luz
Invertida
a natureza é ornamento do arrtista
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Diário de Viagem Desenhado Para Caber Numa Mala

NOTA:
As frases a itálico encontram-se cozidas em cada desenho. 
Os textos escritos a minúsculas são pensados para serem
decalcados com papel químico numa parede do espaço em
que cada um  
se encontre exposto.

 * As imagens só se encontram visíveis na versão para computador

1

ONTEM, NO CAMINHO
HABITUAL DE TODOS OS DIAS
OS MEUS OLHOS POISARAM
EM TUDO
PELA PRIMEIRA VEZ
 
A ponta do meu sapato alonga uma direcção.
O branco na rosa é de prata.
A côr no céu é de mar.
Aquela casa muda a dimensão da terra.
Esta porta não é a única.
Em qual devo entrar?
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2

CEGUEIRA
O meu quarto está escuro de breu.
A trincha da porta deixa entrar algo
que não conheço.
Acomodei-me à escuridão?

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3

AS CATARATAS DOS MEUS OLHOS
NÃO SÃO COMO AS DO NIAGARA.
SÃO AS QUE ME IMPEDEM
DE VER O ESSENCIAL

 
Com um olho vejo
com o outro sinto.

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4

PODE HAVER TANTA BELEZA
NESTE MUNDO
DEPENDENDO TUDO
DO NOSSO OLHAR.

 
A luz dos teus olhos abre
o espaço infinito

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5

HOJE TIVE UMA IDEIA LUMINOSA

 
Ao pisar o asfalto tropeço e caio.
Olho o céu só vejo luz.

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6

QUAL O ESPAÇO QUE VAI DE BACH A BIZET

 
No rumor de todos os dias
há música de esferas

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7

PODEI AS PLANTAS NO JARDIM

 
No cima da árvore há um ninho.
Está vazio.
O pássaro ausentou-se.
Mudou o lugar.

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8
A PÉROLA OU A VIDA

 
O meu alfinete de peito é doirado de Azul. 

De Azul ou de Branco?
É de oiro. Ou de Cinza?
É de Pérola ou Rubi?
O meu alfinete de peito não é ficção.
É procura.
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9
A NATUREZA NÃO SE PODE DIZER

 
Como se pode dizer aquilo que já é?
 
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